Lucia Helena Sider
Poeta / Prosadora / Autora independente / Contadora de histórias
Primeiros projetos em prosa
No início de 2020, comecei a participar de diversos cursos sobre a escrita criativa em prosa, tanto contos como romances. Decorrente desses cursos, comecei a publicar alguns contos em coletâneas (transcritos abaixo). Eles estão aí para dar a cara a bater, enquanto eu desenvolvia o meu próprio estilo e o domínio da linguagem.
Em 2024, estão selecionados e aguardando classificação mais um conto e uma crônica no Selo OFF Flip (Nós 2 - textos de autoria feminina).
Contos e crônica publicados pontualmente em
Antologias
Coletânea "Nada é o que parece" (Trabalho de conclusão do Curso de Escrita Criativa (C.E.C. 2020), do canal Carreira Literária - 2021
(Nunca é) Só na superfície
Lucia Helena Sider
— Sabe, Lucia, você parece um ganso do Himalaia — disse a minha amiga-irmã Adriana durante uma visita à sua casa, num dia em que o termo “aposentadoria por invalidez” foi nada casualmente citado.
— Um ganso? E por que do Himalaia? — ri, aliviada por não ser uma galinha d’angola.
— Ele é gorducho, mas, em compensação, é o que voa mais alto.
Fiquei impressionada, sobretudo porque ela disse isso por causa do que julgava ser meu poder de superação diante de uma melhora substancial de diversos quadros crônicos de dor.
Decidi então que eu seria o tal ganso e que precisava deixar um sinal que me lembrasse disso o tempo todo. Precisava de uma marca no corpo.
*
A Lea tinha feito várias tatuagens e conhecia vários tatuadores profissionais em Sobral, Fortaleza, em Curitiba. Não queria ir tão longe, mas Fortaleza me parecia bom e eu tinha como viajar com facilidade. Ela me indicou um artista que nunca a tinha tatuado, mas de quem ela admirava os desenhos. Seu nome era Júlio Damasceno, então no Studio Saicol, muito perto do shopping Del Paseo. Marquei com ele e expliquei o que queria, levei umas fotos, dessas do Google, do também conhecida como ganso indiano, pousado na grama e olhando para o céu. Queria que no céu tivessem outros gansos voando para os quais o primeiro olhava com sede para se juntar ao grupo.
— Quero que esses gansos façam uma formação em “S”, de Sider.
Ele concordou e sugeriu que fosse em black & white, o que considerei ser uma ótima ideia. Ele disse também que seria melhor fazer uma tatuagem grande, o que eu a princípio achei arriscado e potencialmente doloroso. Mas eu tinha uma área grande e sem flacidez no alto das costas, onde caberia perfeitamente toda a cena. Aceitei arriscar. Ele esboçou, inverteu e fez a marca na minha pele.
Começou. Duas sessões foram necessárias. Na primeira, fui corajosa e forte. Estava excitada, me achando toda da tribo da transgressão. No segundo encontro, abrimos o estúdio no sábado pela manhã e estaríamos a sós. O cheiro inevitável de churrasco humano me deixou abalada e tivemos que parar algumas vezes sempre que eu ficava enjoada e ameaçava desmaiar. Foi tenso e ele não ajudou muito com a insistência em fazer nuvens no céu, o que se demonstrou extremamente doloroso.
Ficou lindo. Eu tinha o meu ganso, a minha marca-lembrete da superação e a minha identidade repaginada. Tinha até poesia para isso: “Print du printemps.” A borboleta largando da crisálida.
*
Alguns poucos anos se passaram. Meus pais, tio e irmão haviam partido. Era visível a nostalgia em meus olhos. Uma dor ou outra ainda me assolava, mais na alma que no corpo.
— Eu o acho tão melancólico olhando para os outros no céu — disse a Rosana, enfermeira da Embrapa.
A Rosana é minha amiga que eu visito sempre no ambulatório para um bom papo e uma tomada de pressão arterial. Naquele dia, ela também massageava minhas costas e pescoço com sua mão firme. Eu estava tensa e triste. Enquanto ela dedilhava meu ganso, já um pouco desbotado, e ouvia meu desabafo, percebeu uma nova camada daquela marca: a nostalgia. E pronto: a tatuagem ganhava um segundo significado e eu logo entenderia por que o tinha feito na terra e não voando. Até então, eu achava que era a minha liberdade ainda incipiente, minha hesitação em voar. Mas o pé no chão poderia também significar minha vida, e os gansos voando meus entes queridos partindo um seguido do outro... Na prática era só porque era muito difícil achar fotos de gansos em voo com tanta riqueza de detalhes.
*
Dizem que quem faz uma tatuagem não para na primeira. Acho que vou ser uma exceção, pois nunca mais tive vontade de fazer outra. É verdade também que a maioria das pessoas que se deixa tatuar tem um significado para cada tatuagem, e não é só por questão estética. Eu acho que meu ganso do Himalaia olhando para os seus antepassados no céu é tão rico em significado que não cabe mais uma outra marca no meu corpo.
Hoje mais uma vez falei com a Adriana sobre a sua marca na minha vida. Ela disse que a marca, ou o mérito, é todo meu. Mas não é questão de mérito. É uma questão de visão e valores que levam em conta cada história que é contada por diferentes pessoas tão importantes na minha vida. Pessoas que passam e voam.
Tenho certeza de que a tatuagem irá ganhar outras interpretações surpreendentes. É só viver, esperar e alçar voo.
Coletânea "Por aqui tudo acontece" (Trabalho de conclusão do curso "O passo a passo da criação de personagens") do Canal Carreira Literária - 2021
Insone
Lucia Helena Sider
Em janeiro de 1993 não tínhamos ideia pelo que iríamos passar. A visita prévia a Pirassununga foi parcialmente frustrada, pois os alojamentos estavam fechados para dedetização. O campus, no entanto, era lindo, um mundo de possibilidades. Eram tantas as expectativas. Morar em outra cidade, morar junto com tantos colegas, desligar-se de referências confortáveis, criar outras referências.
Mudança em fevereiro. Carro cheio. Chego antes e consigo determinar o meu espaço antes das colegas. Aos poucos elas vão chegando e se acomodando ao resto que eu deixei. Quarto C10. Nos outros 11 quartos, outras meninas se acomodam em grupos de duas, três ou quatro. No andar inferior, os meninos se alojam em quartos individuais, pois são menos numerosos que nós. Forte presença feminina nos cursos de Medicina Veterinária. Na primeira noite ninguém dorme. Excitação.
Primeiras aulas, conhecendo os departamentos, divisão em grupos. Querem que eu seja líder e eu declino de ser sozinha, mas me envaideço. Nosso grupo tem dois cabeças. Planejamento de horários mudando a toda hora, faço uma piadinha com o professor Félix. Ironia ainda positiva. De noite, passeio no Centro, brincadeira na praça, como crianças que ainda somos. Sorvete. Carro cheio de amigos, no que seria o “golzinho expresso da Lucia”. Rompendo os limites da velocidade e da coragem. Tudo está nas minhas mãos, os desafios estão ali para serem superados. A velocidade não é diferente.
O que fazer com tanta liberdade? Uns brincam com água, outros brincam com fogo. A convivência forçada começa a passar dos limites entre o prazer e o intolerável. Eles não vão dormir? Tenho que escutar esta música? Grita mais alto! Grita como macho, pois ainda não te ouvi. Meu sarcasmo aflora, ironia negativa. Minha insônia me agride. Primeiros passos do mau humor. Vou ficar dormindo sozinha, não vou para a aula. Você me empresta seu macacão? O grupo agora é acéfalo de uma das cabeças. Meu ego não quer mais liderar nada. Alguns outros só estão em outra cidade e aparentemente não se afetam. Só eu estou de saco cheio? Por que você não fala mais comigo? Não aguento mais suas reclamações. Não aguento mais sua cara.
São 23h e eu preciso dormir. Vou pra São Paulo agora! Carro vazio de amigos. Golzinho expresso da Lucia freia bruscamente diante de uma carreta na entrada da Marginal. Cochilei. Adrenalina. O que eu fiz? Isso é hora de viajar? Não vê o perigo? Você não tem aula o resto da semana? Me deixa dormir, amanhã a gente se fala.
“O sorteio para as vagas do curso deveria valer só para os que estão aqui, não é justo.” Nada é justo. A aula de informática durante a noite me acalma. Mas eu preciso voltar ao alojamento, ver aquelas caras errantes, a insistente Daniela Mercury nos autofalantes, os cochichos na minha varanda. Se eles falassem alto, não me esforçaria tanto para ouvir... O que escuto são fragmentos: “Aqui, o quarto das curais.” Fragmentos e interpretação errada: não somos cobras corais, somos cuzonas.
“Você viu o que aquela louca fez?”, Vozes da boiada no quarto adiante. “Ele é um filho da puta, não deveria te tratar assim.” “Você já vai? Espera todo mundo evacuar...” Gargalhadas. “Eu não vou evacuar aqui!” Banheiros sem trava, chuveiros sem cortina. Quero um pouco de privacidade. Um resto da minha dignidade.
Sou comentada por minhas reações. Julgada errado, creio, não entendem que eu não estou contra ninguém? Tudo bem, meus atos são contraditórios e expõem quem não merece ser exposto. Mas e quanto à minha nudez?
Por causa dos meus olhos bonitos, ganho uma banana com leite condensado em forma de pinto. Eles me premiam, talvez não me levem tão a mal. Talvez eu não tenha essa importância que eu acredito ter. Talvez ninguém perceba o meu sofrer.
Semestre acabando. Devo passar em tudo. Misto de alegria e saudade no arrumar da mudança. Frustração? Eu poderia ter me integrado mais? Eu poderia ter sido menos eu? O que eu fiz com tanta liberdade se não a deixar escapar?
Em São Paulo já em definitivo preciso pintar o meu quarto, mudar a disposição dos móveis. Incorporar um novo eu ainda desconhecido. Olá, prazer, eu sou a nova Lucia. Podemos fingir que Pirassununga não aconteceu?
Diante de uma folha de papel eu vomito:
Temos memória de um tempo em que a luz brilhava,
da nossa história, da turma que encantava.
Planos, ideias pra hora de conviver,
foi nosso erro atritos jamais prever.
Logo de início foi bom:
brincar na praça, fazer todos ouvir o som
da amizade crescente e bonita,
antecipando a saudade infinita.
Deixamos parentes, casa, referência
e um longo período de adolescência.
Alguns desfrutando prima liberdade,
outros apenas em outra cidade.
Pirassununga foi bom, apesar
de todos os conflitos no ar.
Nem sempre juntos cantamos,
muitas vezes até nos queimamos.
Nem sempre o deixado foi boa impressão
e até nestes casos, foi sem intenção.
Tem dica da prova, isso não pode!
Deixa que amanhã a gente explode!
Cara de tacho, idiota, imbecil.
Foi só provocar e acender o pavio...
O que se ganha em denunciar?
Qual é o problema se ele vai pagar?
Afinal, a turma tem que se unir
e mesmo dedando ninguém vai punir.
Aprende de tudo um pouco
quem não sabia que o mundo é tão louco?
Arruma, sorrindo, a bagagem.
Vai se preparando pra última viagem.
Vai voltar agora para o seu canto
na espera de um novo encanto.
Sem imaginar que lhe fará tanta falta
a insônia da bagunça e da música alta.
Quem não se falava, falará algum dia?
Deixa de lado a pergunta e sorria!
Nos próximos semestres, voltamos, esporadicamente, em semanas curtas. Às vezes preferimos o hotel municipal, outras vezes encaramos o alojamento “INPS” – tudo junto e misturado. Vacinados e um pouco saudosos. Não dá para voltar no tempo? Aqui é tão bonito, o campus, tudo tão funcional. Já participo de todas as aulas, sugando o máximo do que eu perdi em 93.
Se pudesse culpar alguma coisa, escolheria a insônia. Malvada que ofuscou o sonho de viver bem e em liberdade com meus vizinhos. Só os anos curariam as feridas. Em alguns casos não.
Sorrir e superar.
Coletânea Não conte a ninguém (Trabalho de conclusão do curso "O passo a passo da criação de personagens") do Canal Carreira Literária - 2021
Amarelo
Lucia Helena Sider
De acordo com a publicação do Ministério da Saúde, a intoxicação é responsável por 18% das mortes… Do total de ocorrências, 70% das tentativas de suicídio por intoxicação aconteceram com mulheres. — Redação GALILEU, 23 SET 2018 — 11H09.
Eu estava bem, estável.
É preciso falar sobre isso.
No hospital, eles foram corretíssimos, não me julgaram em momento algum.
— Agora vocês vão ter que me socorrer.
— Decidimos que você não vai viajar conosco.
— Tenho uma coisa para contar: no dia 23 de dezembro de 2003, eu tentei me matar…
— Olha só, ela deitada no chão, como uma coitadinha. E agora foi para a piscina com as crianças… Quando ela vai enfrentar a vida?
— Doutor, eles me satirizaram. Eu só achei que ficar no chão era legal… E, depois, as crianças não seriam tão cruéis comigo.
— Minha mãe me contou, mas ele negou.
— Legal você vir comigo na consulta, o doutor diz que você pode sanar todas as suas dúvidas com ele.
— A gente percebe que ela está fingindo, se fazendo de vítima…
— Você poderia ter ouvido as explicações do médico e não ter falado daquele jeito.
— Já não foi suficiente eu ir? Então DESCULPA!
— Amanhã todos vamos passar o Natal na casa do seu irmão.
— Eu não quero ir.
— Não tem que querer.
Meus pais tinham dificuldade em lidar comigo, com aquele diagnóstico e com tudo o que ele trazia, do estigma à superproteção. Eles se esforçavam em entender. Atendiam-me, davam-me as coisas, deixavam-me dormir no chão. Seguiam as orientações do médico, embora achassem algumas exageradas, como a de ficarem responsáveis por dar os remédios para mim.
Meus irmãos eram outro mundo. Achavam tudo uma farsa, que eu só estava chamando atenção, como sempre. Mas se assim fosse, e eu não sei se o era, não funcionava. Eles nunca se compadeceriam de mim. Para eles, eu deveria estudar fora, deveria sair de casa. Para eles, parecia que seria melhor eu sair do radar da família por completo. Nunca consegui confirmar se era isso mesmo o desejo deles. Não se fala sobre o assunto como o assunto merece.
— Eu não aguento mais um Natal em família.
Eu só queria pôr um fim no sofrimento. E o sofrer ou não deveria ser decisão minha. Por um momento de impulso, era decisão minha.
— Droga, eu nunca vou sangrar cortando meus pulsos com um barbeador descartável. Preciso de outro recurso… O lítio. A caixa inteira.
Quem pensa que no momento da morte passa um filme de toda a sua vida não entende a motivação de um suicida. Nada, nada além da vontade de acabar com tudo. Não tem família, não tem amigos. Nem de longe passam pela tua cabeça os méritos, as culpas, os arrependimentos. Nada, nada além de métodos para se chegar à morte. E se o método não é rápido o suficiente, você pode deixar um pensamento intruso adentrar a sua cabeça.
— Acordem, agora vocês vão ter que me socorrer.
Sem pressa, se apronta a família. Chama o irmão. Será que ela tomou mesmo? Os blísteres estão vazios. São tantos! Nem uma palavra no carro. Pronto atendimento no hospital. Sonda nasogástrica. Carvão ativado. Muitos comprimidos só parcialmente dissolvidos. São tantos! Eletrocardiograma. Não houve absorção significante, mas poderia ter sido muito ruim, sofrido. Tremores, fala embolada, confusão mental. Nada disso. Fossem suas escolhas diferentes…
— Aconteça o que acontecer, você não deve incomodar nossos pais… Você deve pedir para a gente.
Me percebi só. Era assustador. Depois de tentar me matar, tudo dependia só de mim: meus atos, minhas decisões, minhas cagadas, meus acertos. Só. Era estranhamente libertador. Libertador porque eu percebi assim, inerentemente esperançosa, mas poderia perceber diferente e dar merda. Simplesmente dar merda. Libertador, porque no fundo eu não queria morrer.
Vi tudo o que não tinha e talvez nunca teria. Mas palpei o que era só meu: minha vida, meu destino. Com uma idiotice, eu amadureci. E ninguém me tira isso. Premissa fundamental do ser humano: manter a vida. Qualquer ato em contrário é desespero e insanidade. Uma doença de base, um mundo hostil, falta de diálogo.
Temos, temos que falar sobre isso.
Antologia Parem as Máquinas (Selo Off Flip) - 2020 (crônica)
Um pouquinho herege
Lucia Helena Sider
A perdição das pessoas é o pensar. Sim, porque essa porra cansa e só nos traz consciência da infelicidade. Os filósofos... Diz-se que a maioria deles era feita de desocupados. Dizem que os animais não pensam e por isso alguns são domesticados. Meus gatos pensam, e muito, e a domesticada fui eu. Do “gene egoísta” ao “gato egoísta”. Mas gosto de me cercar de gatos assim, pois eles me fazem sentir como alguém que vale a pena. Sou feliz por ter gatos, cachorros e algumas poucas pessoas que apostam em mim, a maioria por me conhecer superficialmente.
Pessoalmente, o pensar demais me distrai de coisas que eu deveria ter feito muito antes. Tarefas acumuladas me fazem pensar de quem é a culpa por isso. É um saco ter opinião sobre quase tudo. É doloroso pensar sobre tudo e não conseguir colocar para fora. Eu, aos poucos, vou me superando, sendo assertiva (muito antes de estoura203,r). Mas
imaginem como era a minha cabeça com tanta coisa acumulada! A maioria dos pensamentos sem utilidade nenhuma. Aprendi que guardar opinião para si era melhor (!?) e recentemente comecei a transgredir isso, como fruto de ter pensado demais. Lembra daquela máxima? Não é que eu não existia. Eu era domesticada. Mas e aí? Grande bosta.
Eu, na minha história até aqui, produzi coisas bonitas. Algumas eram tão bonitas, que alguns diziam ser dom de Deus! Até que uma hora eu me enchi o saco de tanto estudar, deixar de ter lazer, pagar diversos micos, e Deus levar os créditos. Além disso, eu ainda vivia com medo de ir para o inferno, sem levar nada pro meu próprio crédito... Assim
cresceu a vaidade e eu comecei a pensar nela também.
Quanto mais eu penso, mais eu preciso pensar. E a porra da inteligência artificial faz isso muito mais rápido e melhor, sem risco de entrar em depressão ou ainda se encher de orgulho demais. Sofro destes dois males, depressão e orgulho, e sempre me surpreendo com pessoas que relevam as minhas buscas tolas, as minhas heresias...
Já sei: vou me alienar ao extremo! Viver só em função dos gatos. Faço carinho em um, no outro, até eles entrarem em acordo de quem dorme comigo hoje, quem sobe no colo amanhã... Felicidade é ser amada. E daí dá para extrapolar: amor que pensa, morre. Amor que sente, perdura. E vou percebendo que sei sentir também...
Antologia Parem as Máquinas (Selo Off Flip) - 2020 (conto)
Contos casadinhos sobre casaizinhos iniciados em carros populares
Lucia Helena Sider
I.
Ele falava coisas aleatórias e até sem sentido. Seu tom de voz era carinhoso, fala baixa, pausada. Eu o olhava atentamente e quieta, esboçando um sorriso nos lábios.
“O que você está pensando, menina?”
“Eu estou pensando... que hora que você vai me beijar...”
“Que hora eu vou te beijar? Pode ser daqui a duas horas, daqui a alguns minutos...”.
E me beijou. Um beijo longo e crescente, exploratório de minha boca. Seu gosto era bom e eu queria continuar provando, como se fosse a primeira e era a primeira vez. Aos poucos não era só beijo, eram toques... e perdemos a noção do tempo e de onde estávamos: num gol modelo antigo em pleno estacionamento do shopping...
A partir dali só nós sabemos o que aconteceu... Nós e o intrometido segurança do andar.
II.
A menina o esperava sair de seu estúdio de gravação e lá entrava para se abraçar e cheirar a sua jaqueta colocada displicentemente no encosto da cadeira. Eram talvez os feromônios exalando e potencializando aquela paixão já tão acentuada.
“Hoje vou pedir carona para ele de novo” – pensava ela.
O rapaz sabia dessas atitudes da secretária, pois não era bobo e alguns colegas comentavam. Todos faziam gosto na relação, mas o rapaz, sem muita experiência com garotas, desconversava. Raciocinava ele que iria testar até onde ia a paixão cega da colega. Bolou um plano de que quando ela pedisse mais uma carona inoportuna, ele iria testá-la de maneira implacável e sem dó.
E não deu outra: um dia de muito frio em São Paulo, os dois entraram no fusquinha verde abacate para seguir para seus lares. E ele, que tinha se segurado desde a última hora, soltou um peido silencioso, porém mortal.
Não se sabe o que se seguiu de imediato. É segredo que eles souberam guardar. Sabe-se e é notório que o casal se formou e eles até se casaram. Eduardo sabia que amor tinha que ser incondicional e Leonilda, Leo, tinha escolhido esse rapaz para ser seu parceiro de vida. O amor logo foi recíproco e até os mais desavisados e incrédulos familiares e amigos viram nos olhos (e no nariz) de Leo uma maneira de ver um Eduardo bonito e interessante.
Parece piada, mas é apenas uma maneira de contar a história de meu irmão e o amor da sua vida. Claro que eles exalavam muito mais que feromônios e gás metano. Eles exalavam aceitação, empatia, fidelidade, cumplicidade e bom exemplo a todos que os conheceram. E sorte de quem foi esperto, observou e aprendeu.
Pode ser uma lenda, mas foi assim que eu ouvi e gosto de lembrar da história, sempre com carinho de meu irmão.
Coletânea Interfaces (Trabalho de conclusão do curso "Conto: a escrita do nocaute" do Canal Carreira Literária - 2020
Almas sincronizadas que encontraram a paz
Lucia Helena Sider
Ainda com o perfil do Match.com em aberto, continuo a receber mensagens de candidatos, a maioria estrangeiros, provavelmente falsos como a minha última desilusão. Nunca imaginei realmente me envolver com alguém que eu só conhecesse por foto, trocas de e-mails, chats e telefonemas com hora marcada. Eu tinha entrado nessa só para tentar esquecer o Q., mais um para a minha coleção de amigos-amores, sempre platônicos. Eu sempre confundindo as coisas, sempre entendendo errado as similaridades, as palavras. Mas o suposto americano me envolveu, talvez por causa da também suposta filha, apelando para meu instinto de cuidar. Terei um dia um amor de verdade?
Propostas de outras plataformas de encontros virtuais, todas com a mesma ladainha, preencher perfil com nossas características físicas (me constranjo ao lembrar do um pouco acima do peso), perfil socioeconômico, formação, sonhos, tudo prato cheio para o romance-scam. Sim, aprendi esse termo depois de checar aquela história esquisita e descobrir tudo. Ainda bem que meu irmão entende de ferramentas da internet.
Chega uma propaganda diferente, C-date, site de encontros casuais, pretensamente ideal para irmos passando o tempo enquanto não achamos o amor da nossa vida, diz a propaganda. Vou deletar, não tenho esse perfil... Espera, deleto depois...
Penso — e tenho pensado mais do que o normal nestes dias — por que terá isso caído na minha inbox, justo quando eu estou tão carente de um toque? Lembro-me de Q. nunca ter me tocado, apesar de tanta conversa com conotação sexual. Eu sentia um tremendo ciúme das meninas abraçadas por ele quando descontraído e da porra da namorada, a imatura, segundo ele mesmo sempre me confidenciava. Vou ver como é isso, C-date. No perfil só devemos preencher os atributos físicos, localização e PREFERÊNCIAS SEXUAIS! Nos outros não tinha isso. Cara, muito punk!
Dei um tempo para relaxar e comecei a preencher, sendo real nas características físicas (tirando o tradicional “um pouco acima do peso”), tudo mais com nome e e-mail falsos criados só para isso. Preferências sexuais, falarei TUDO? O que é tudo? Fui pensando e descobrindo ser um pouco mais do que o básico! Vou deixar somente os caras de São Paulo me procurarem, pois é minha terra, mas bem distante de onde estou. Enviar!
O primeiro a aparecer é um simpático e divertido homem de São Paulo. Ele parece simples e muito informalmente vestido em sua foto de perfil, talvez até feio, já que algumas fotos são nubladas até o usuário liberar para a outra pessoa. Respondo a ele com muita naturalidade, enquanto não surgem opções mais interessantes.
Os outros logo aparecem. Descubro os nudes e que eu não estou nada a fim de receber ou trocar esse tipo de mensagem. O primeiro “malvestido” não me pediu isso. Eu ainda quero conteúdo e algo mais realista.
Continuo a conversa só com o primeiro candidato. Ele vai logo me contando todos os seus podres, facilmente comprovados pelas redes sociais e pelo Google. Sim, ele me deu o nome completo: ousado, desprendido! Em contrapartida, de mim ele não sabe nada, revelo só meu primeiro nome. Ele não se importa com isso e vamos ficando mais próximos. É divertido conversar com ele.
O tempo passa, as mensagens vão ficando mais interessantes e íntimas, dando vazão ao inexplorado, e eu me abrindo quase nada, porém falo tudo o que vem ao coração, a poesia, os gatos, até os desejos sexuais. A distância nos aproxima, sem ainda muita pretensão de encontrá-lo, pois Q. ainda está à espreita.
É julho e eu devo ir para São Paulo, pois minha mãe está hospitalizada e toda a família vulnerável. Eu, aliás, acumulo vulnerabilidades, mas algo me diz que posso superá-las. Essa possibilidade de encontro não tinha passado por nossas cabeças ainda. Mas eu já estou segura e à vontade com ele. Vou encontrá-lo em algum intervalo entre o hospital e a casa do meu pai, aonde também vou apoiá-lo durante essa fase difícil. Eu só preciso escolher um lugar seguro e dar um voto de confiança a ele e a mim mesma.
Não posso vacilar, mas será que tenho coragem? Eu esperei quase a vida inteira e só me meti em roubada, fosse quando não me expressava, quando expressava tudo de uma vez e assustava, fosse quando... deixa para lá. Basta, eu vou no encontro!
Shopping. Praça de alimentação na saída do metrô. Ele está atrasado, mas é pouco ainda, tenho a chance de desistir. Coragem, fico. Aparece um, frio na barriga, não é ele. Tomo um café. Ele aparece... Reconheço seus olhos e sobrancelhas inconfundíveis. É bem mais bonito do que na foto. Está alinhado, como eu. Eu olho para ele já sorrindo, ele me vê.
Um abraço apertado e longo, beijos no rosto, toques nas mãos.
Sentamo-nos, vamos andar, almoçamos. Ele não quer ir ao cinema. Vamos nos conhecer. Levo ele ao Aquário de São Paulo no Golzinho emprestado pelo meu irmão. Ele gosta dos peixes, diz que o pirarucu é ótimo na brasa. Fico sem jeito quando começa o mergulho da sereia, mulher muito mais formosa do que eu. Ele fica perplexo com os morcegos gigantes, eu prometo protegê-lo e nos tocamos ainda mais.
Voltamos ao shopping. Estaciono numa vaga escondida. Logo ele deverá ir trabalhar. Conversa vai, conversa vem, conversa gostosa, conversa fiada. Eu nem falo mais, só sorrio. Ele fala pelos cotovelos.
— O que você está pensando, menina?
— Estou pensando quando você vai me beijar...
— Beijar? Pode ser daqui a duas horas, daqui a vinte minutos...
Encontramo-nos ainda mais fisicamente e nossa exploração continua, intensa, gostosa, nova. Ele tem que ir trabalhar. Caramba, é tão bom, não para... O vigia do shopping está à espreita. Está tão bom...
— Sabe o que eu mais gostei de você? É a tua simplicidade e o modo como você precisa de pouco para ser feliz.